Muito já se falou sobre o destaque dado à mulher e aos marginalizados na obra de Chico Buarque. Ampliando a percepção para outros temas abordados pelo artista, sempre me questionei sobre a representação do amor em suas canções e sobre o modo como homens e mulheres vivenciam as relações amorosas. Tal interesse me levou a escolher essa vertente da produção de Chico como tema da minha monografia de conclusão do curso de Jornalismo. Esse blog, aliás, também é um fruto desse trabalho, que me trouxe tanta alegria e pelo qual me sinto muito orgulhosa.
Antes de começar a destrinchar o universo amoroso da obra buarquiana, cito aqui uma canção do compositor, síntese de sua visão do sentimento:
Em Samba do Grande Amor, de 1983, o emissor da canção revela seu descontentamento em relação ao sentimento. A palavra “mentira”, repetida exaustivamente ao longo de toda a música, se refere a sua descrença no amor, um desencanto proveniente de desenganos e decepções que se sucedem nos versos. A composição é apenas um exemplo dentre tantos outros nos quais Chico explora uma representação do amor que foge do ideal construído pelos contos de fadas, pelos finais felizes das novelas e dos filmes românticos, em que relações amorosas e perfeição caminham juntas em sintonia. O amor de Chico é real, não aquele que sonhamos, mas aquele que vivemos. Um amor que divide espaço com os problemas cotidianos, com a mesmice da rotina, com as contas a serem pagas, os filhos a serem educados, as puladas de cerca, as acolhidas resignadas, os conflitos das ideias e personalidades contrárias.
Nas canções de Chico, fantasias quase nunca sobrevivem, amores são imperfeitos e inatingíveis, e príncipes viram sapos da noite para o dia, como nos queixa a pobre e desiludida Lily Braun nos versos dessa composição de 1982, escrita em parceria com Edu Lobo:
Como num romance
O homem dos meus sonhos
Me apareceu no dancing
Era mais um
Só que num relance
Os seus olhos me chuparam
Feito um zoom […]
Abusou do scotch
Disse que meu corpo
Era só dele aquela noite
Eu disse please
Xale no decote
Disparei com as faces
Rubras e febris
E voltou
No derradeiro show
Com dez poemas e um buquê
Eu disse adeus
Já vou com os meus
Numa turnê
Como amar esposa
Disse ele que agora
Só me amava como esposa
Não como star
Me amassou as rosas
Me queimou as fotos
Me beijou no altar
Nunca mais romance
Nunca mais cinema
Nunca mais drinque no dancing
Nunca mais cheese
Nunca uma espelunca
Uma rosa nunca
Nunca mais feliz
Que qualidades ímpares possui o escolhido de nossa emissora antes do casamento. Encantada, ela cede, abandona a vida de dançarina por uma ao lado do amado. Eis, então, que tudo se transforma. Do modelo de relação amorosa ardente e apaixonada, um casamento morno, sem paixão, sem fogo. Nunca mais feitiço, nunca mais encanto. O beijo no altar de Lily Braun sela o desfecho de um romance, o último suspiro de uma fantasia que, afinal de contas, cerca todos os amores. Mais buarquiano, impossível.
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